3
Sim, isto é um fato. Mas, esse "esquecimento" das raízes açorianas por parte da população sulina não é algo exclusivo daqui - na verdade, foi um fenômeno muito comum durante o período colonial. Já se passaram mais de 250 anos desde a imigração açoriana, e isso é mais do que suficiente distanciar a memória de um cidadão comum de Porto Alegre ou de Florianópolis das suas próprias raízes. Lembre-se, estamos falando de pescadores, alguns ferreiros, criadores de gado, todos analfabetos, que vieram para cá porque a coroa portuguesa queria consolidar a presença portuguesa nas partes mais meridionais da colônia, e esvaziar um pouco as ilhas do arquipélago dos Açores. Antes de responder propriamente o teu comentário, eu gostaria de deixar claro que, dos estados do sul do Brasil, foram os estados de Santa Catarina e do Rio Grande que mais receberam imigração açoriana. Desses dois estados mencionados, foi Santa Catarina aquele que ofereceu um ambiente mais propenso à manutenção da cultura açoriana, e, mesmo assim, antes da Segunda Guerra, nem mesmo o mais isolado pescador do sul da ilha de SC sabia de suas origens. Por quê? Na bibliografia, há muito debate sobre isso. Diferente das outras partes do Brasil, aqui, quando os açorianos chegaram, eles se tornaram - automaticamente - a maioria no litoral catarinense. Aqui, o contato com o "outro", o "diferente", não foi tão forte. O que eu estou querendo dizer com isso? Quando nós entramos em contato com algo (uma cultura, uma pessoa, algo exótico a nós mesmos), nós reafirmamos o nosso próprio eu, e vemos o quanto nós somos diferentes daquela cultura/pessoa que está diante de nós. Talvez, uma das maiores contribuições da imigração alemã para a população luso-descendente do litoral de Santa Catarina (de todas as camadas sociais), foi a criação necessidade de resgatar as próprias origens dessa última. Os alemães sempre foram vistos como aqueles "com origem", em relação às populações do litoral e da serra catarinense, que eram vistas como "sem raízes". Como tu deves saber, durante o período do Estado Novo, nós tivemos a campanha de nacionalização. E o foco principal era engradecer a matriz luso-brasileira, e omitir qualquer coisa não alinhada a isso (indígenas, africanos, europeus não-portugueses). Foi durante o Estado Novo e a Segunda Guerra, que nós resgatamos as nossas origens:
"O povoamento açoriano no século XVIII garantiria este caráter luso-brasileiro. Os casais açorianos teriam sido responsáveis pela implantação, em Santa Catarina, das bases administrativas de origem portuguesa; a cultura era de tradição portuguesa e, ainda mais, o povoamento açoriano teria sido responsável pela defesa da região garantindo as fronteiras brasileiras para o domínio português no sul do Brasil. Por tudo isso, os intelectuais afirmavam a identidade luso-brasileira de Santa Catarina" (LEMONGE, p. 157).
"Nesse momento, os intelectuais do litoral do Estado de Santa Catarina sentiram a necessidade de se afirmar em relação aos imigrantes alemães, para mostrar a brasilidade de Santa Catarina. Os historiadores catarinenses “reconstruíram” a história dos imigrantes açorianos enaltecendo o litoral como ponto de defesa do país e tendo suas características como uma unidade cultural homogênea do Estado. Simultâneo a isso, os núcleos de povoamento alemão, localizados ao norte do Estado, davam saltos na economia, desde fins do século XIX, com as indústrias têxteis de Brusque e Blumenau, em contraposição ao litoral que sentia os impasses do desenvolvimento" (LEMONGE, p. 158).
Sobre o Rio Grande do Sul
Dentro da sociedade gaúcha, durante os séculos XVII, XVIII, e a maior parte do XIX, o caminho para o sucesso sempre foi a pecuária. Lembre-se que, dentro do mundo colonial luso-brasileiro, o Rio Grande do Sul estava engajado no abastecimento interno da colônia (produção de carne, couro, e alguns alimentos). Nos relatos de viajantes, cronistas, que passaram pela então província de São Pedro, na metade do século XVIII, já é visível a mudança causada pela dinâmica social local nas gerações mais novas. Postarei um relato da época. Preste muita atenção na segunda parte desse relato. Essas brincadeiras mencionadas não eram encontradas em qualquer ilha do arquipélago açoriano. Ou seja, qual o ponto que eu quero chegar: o açoriano, no Rio Grande do Sul, tornou-se gaúcho, e foi se adaptando à vida no campo nos pampas e em outras regiões do estado (outrora província). O "poncho" nada mais é que uma vestimenta tradicional do homem campeiro dos pampas, vestimenta essa de origem indígena, que inexistia em Portugal. Só para tu teres uma noção, houve um significativo aumento do número de povoados no Rio Grande do Sul, uns 20-30 anos após a chegada dos casais açorianos na metade do século XVIII. Exemplos: Cachoeira do Sul, Rio Pardo, General Câmara, Triunfo, Viamão, Taquari, Porto Alegre. Uma parte considerável da elite estancieira gaúcha tinha raízes açorianas - o próprio Getúlio Vargas, por exemplo. No RS, os açorianos e os seus descendentes diretos se "interiorizaram", já em Santa Catarina a maioria ficou no litoral, onde era mais possível reproduzir os mesmos costumes, modo de vida, e tradições que existiam nas ilhas açorianas.
"Como a maior parte dos habitadores deste continente são insulanos ou ilhéus, os termos, os costumes, os vestuários são grosseiros, e pela mesma ordem de grossaria criam seus filhos.
[...] o vestuário com que as mulheres vão ao templo são mantéu e saia. Os homens, o seu uso comum é andarem em véstia, poucos de capote, e os mais usam de um pano aberto pelo meio, a que chamam poncho, pela qual abertura metem a cabeça, e tão bem lhes serve de cobertor na cama ou xale.
Os meninos logo de tenra idade aprendem a laçar cachorros, quando maiores terneiros, e quando homens potros, potrancas, éguas, cavalos, quer domésticos quer xucros. A ler e escrever se não empregam, pois todo o destino é laçar, é arrear e bolear.
Fontes:
CESAR, Guilhermino. Raízes históricas do Rio Grande do Sul. In: Rio Grande do Sul. Terra e Povo. Porto Alegre: Globo, 1964.
LEMONJE, Suellen de Souza. Construção da identidade catarinense: a tentativa de legitimação da cultura açoriana e
da cultura alemã. Revista Santa Catarina em História - Florianópolis - UFSC – Brasil ISSN 1984-3968, v.7, n.2, 2013
Bookmarks